sábado, maio 16, 2009

Uma outra realidade

Oito da manhã.

O meu pai vai ajudar a minha avó a levantar o meu avô da cama. Não tem força no corpo, o cancro da próstata alastrou-se aos gânglios periféricos, e aos ossos. Os pés, as mãos e os genitais estão intumescidos. Ajuda-o a ir à casa de banho. Precisa de auxílio para se sentar e levantar-se da sanita. Lava as mãos no lavatório, enquanto o meu pai o segura, o sabonete escapasse-lhe das mãos que não têm a firmeza de quando trabalhava com a enxada no campo. Mete a placa dentária, “é para mastigar” diz. Não tem força no maxilar para mastigar, presumo que se sente melhor com ela, mais inteiro! Pequeno-almoço preparado pelo meu pai, batido de manga e papaia. O meu avô, que não tem muita força, tem que beber o batido, em três vezes, numa chávena “levezinha” que lhe permita realizar sozinho o movimento de a levar à boca. Bebe tudo. Aliás, o meu pai não sai de perto dele enquanto ele não acaba de o fazer. Toma os medicamentos que o médico receitou. Acabando de comer, fica mais um pouco à mesa para não se deitar logo. O meu pai vai deitá-lo na cama.

Entretanto a minha avó já começou a fazer o almoço. Sopa. Como não consegue mastigar tem que ser tudo passado. Sopa de legumes com carne, sopa de legumes com peixe, sopa de toda a maneira e feitio.


Dez e meia da manhã. 

Vou ajudar a minha avó a levantar o meu avô da cama. Desta vez quer ir agarrado à cadeira, como se a mesma fosse um andarilho, para a casa de banho. Levo as mãos por baixo dos seus braços caso ele perca as forças. Repetimos o ritual da casa de banho. A princípio não quer que o ajude, que lhe dispa as calças do pijama. É como se fosse uma humilhação não conseguir realizar uma tarefa tão simples, mas pior tão íntima. O seu corpo encontra-se completamente exposto, e são os outros quem têm de cuidar dele, de limpá-lo, de lavá-lo. “Não sei que vida é esta a minha!” acaba por dizer. Ao fim deste processo a sua respiração é acelerada. Cansa-se muito. Quando perguntamos se está cansado diz sempre, “não!”. Sai da casa de banho agarrado a mim, já não quer a cadeira. Sento-o na cadeira frente à mesa da cozinha. Pergunta pela manta que costuma colocar por cima das pernas e pelo xaile que usualmente mete pelas costas. Vou buscar e coloco-os. Come um iogurte com cereais, outras vezes um sumo com nestum, mas tudo sem grande pastosidade porque custa-lhe engolir. Onze horas, volta para a cama comigo a segurar-lhe por baixo dos braços, “assim não dói” diz.

 

Uma hora da tarde.

Saindo da cama, rotina da casa de banho. Sentado na mesa da cozinha, a minha avó serve-lhe a sopa numa chávena média. “Quanto mais comida ele vê menos come”, diz a minha avó. Além de que para comer a sopa demora uma meia hora. Sobremesa, pudim, maçã cozida ou pêra. Costuma fazer cara feia! Na sua perspectiva umas laranjinhas, ou umas nêsperas eram bem melhores. Como não pode estar sempre deitado dado que tem tendência a desenvolver úlceras de pressão, fixa à mesa umas duas horas. Só depois o ajudamos a caminhar da cozinha para o quarto e a deitar-se. Tarefa ingrata, dada a dor que tem nos ossos e a falta de mobilidade. Tem que se sentar e depois com uma mão a apoiar as suas costas e cabeça, e a outra por baixo das pernas, deito-o. 

 

Quatro/Cinco horas da tarde.

Sair da cama. Rotina da casa de banho. Cozinha. Lanche fortimel. Produto alimentar que se compra na farmácia e que ajuda a fortalecer o corpo. Indicado para pessoas que têm úlceras de pressão, que entre outros factores podem ser causadas pela anemia da qual padece o seu corpo. Essas cinco/seis horas volta para a cama. Sempre que anda sente-se mais cansado. Não reclama! Não se queixa!

 

Oito/Nove horas da noite.

Cama, casa de banho, cozinha. Ao jantar mais uma sopinha. Não há sobremesa. Volta para a cama às nove/dez horas da noite. Ritual dos cremes para que não ocorram mais úlceras de pressão, feridas horríveis que se abrem na pele e que podem chegar aos ossos ficando com cheiro a pútrido como a carne podre. Não tem nenhuma úlcera neste estado, ainda bem. Para prevenir a enfermeira faz-lhe os pensos de dois em dois dias onde está já a carne amarela. Nas zonas vermelhas limpamos, nós, com soro fisiológico e colocamos a pomada. Umas vezes dorme até de manhã, de outras vai à casa de banho por volta da meia-noite, uma da manhã.

A mecânica, em si, não é desgastante. Fazer uma vez, duas, três ou mais, não é o que transtorna e corrói a alma. É o sofrimento que ele tem e carrega todos os dias, numa rotina perversa que lhe mantém o corpo e lhe consome a alma, que me deixa esgotada, mas presumo e vejo que também aos meus pais e à minha avó. Diz que “o melhor era cortar o pescoço”, que “não precisava tanto sofrimento”, que “Deus nos ajude a ser felizes”, que “esta casa está condenada, é o mal, ninguém se salva”, etc. A lucidez do que lhe está a acontecer é tremenda. Como o comum dos mortais acha que está a pagar os seus pecados “é o que me calha”. Acredita mesmo assim num Deus, do qual vai falando como fonte de esperança não para ele, mas para os seus filhos, mulher e neta. Não tenho fé nenhuma. Não o digo. Afinal desde os meus doze anos que não tenho motivo para acreditar numa fé. Que Deus seria esse que faz as pessoas passar por tal sofrimento e provação?! Que torna o corpo uma prisão para a alma e o espírito?! Não, por certo não tenho, nem sei se hei-de encontrar essa fé. Procuro, sim. Mas não a sinto, nem vejo. O que aprendi desde os meus doze anos, quando morreu a minha avó com um cancro do cólon, é que não havia motivo transcendente para o que lhe sucedeu quando era tão nova, nem sessenta anos tinha. Não lhe observo uma lógica, nem perscruto uma razão, mundana ou superior. Aprendi ainda que nem todos os indivíduos que nos rodeiam, ou dos quais nos rodeamos, são talhados ou se moldam para connosco percorrer esse trilho.    

Contudo, a fé que consigo almejar reside nos que connosco trilham esse caminho doloroso e tortuoso mas, paradoxalmente cheio de uma vida resquícia e ainda pungente, que não troco por outro. Não se revela nenhum mistério da vida nem da morte, ou pelo menos não os percepciono. Conheço, sim, todos os dias um pouco mais dessa pessoa que me ama, que me dá carinho, e que me protege desde que nasci. Vivência e partilha que me preenche quando estou contigo, e se esvazia quando penso que te vais ausentar. Ambivalência do sentir angústia, medo, tristeza, alegria, e esperança irracional, pois sei que o fim do teu corpo é iminente mas que o mantemos o mais cómodo possível, apesar das dores e das emoções que só tu experimentas e conheces. Embora difícil, não me imagino a deixar-te percorrer este caminho ao lado de estranhos que não te conhecem e para os quais és mais um doente oncológico em fase terminal. Desejava que não sofresses, se não te ajudo como precisas perdoa-me. Amo-te.

Sem comentários: